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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Água, Emprego e Muito Voto!

"No calor de 35 graus de Floresta, naquele pedaço de Pernambuco onde os desertos não param de crescer, um velhinho oferece água em tanques de plástico. Na boleia da carroça puxada por um burrico de pernas bambas e passos hesitantes, o tanque tem capacidade para 200 litros e custa R$ 4. É dinheiro.
Em Floresta, a garganta fica seca em poucos minutos de conversa. O suor empapa a camisa, e o sol deixa a pele esturricada. A água tem um valor difícil de imaginar fora dali. Nesta região de PIB muito baixo, quem ganha o salário mínimo nacional vira arrimo de família. Com R$ 4, é possível almoçar macarrão, arroz, feijão, carne e salada. Numa cidade próxima, encontra-se um quarto de hotel com cama limpa, banho quente e café da manhã por R$ 28. A diferença é a água. Comparada à conta de uma família de cinco pessoas no Brasil Central, o tonel do burrico custa o quádruplo.

A seca nordestina acompanha a política brasileira desde os tempos em que o país era um império escravista. Já naquele tempo, Dom Pedro II pensava numa obra de engenharia capaz de distribuir uma porção dos bilhões de metros cúbicos do Rio São Francisco para a população necessitada. Proposta semelhante foi debatida no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas naufragou na guerra entre chefes políticos de Estados com-água – Minas Gerais e Bahia – e sem-água – Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Em seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu levar a ideia de distribuir as águas do São Francisco para a vida real. Tão real que, embora o povo nordestino ainda não tenha recebido uma gota a mais em suas torneiras (pois a primeira etapa dos trabalhos da transposição do São Francisco só ficará pronta no ano eleitoral de 2010), na semana passada o presidente Lula liderou uma comitiva de ministros e assessores para uma visita de três dias a um conjunto de concreto, rocha e manta plástica com mais de 700 quilômetros de extensão. “Aqui a aprovação de Lula passa dos 95%”, diz o deputado baiano João Leão. E lembra a presença da candidata presidencial Dilma Rousseff na caravana, acompanhada pelo também candidatável Ciro Gomes, a quem Lula agradece por ter comprado a briga inicial pela transposição quando era ministro da Integração Regional.
Em função de um nome enganoso, “transposição”, muitos ficaram com a impressão de que se pretendia mudar o Velho Chico de lugar. Não é isso. O rio não sai do lugar – só um pouco da água, algo como 2% de sua vazão. O projeto é construir canais de concreto para ligar as diversas bacias do rio, transportando água aos açudes da região, de onde ela será enviada a depósitos menores, até chegar à casa de quem precisa.
Adversário mais conhecido da transposição, em 2007 o bispo da cidade baiana de Barra, dom Luiz Flavio Cappio, fez uma greve de fome de 23 dias para denunciá-la. Nas missas e nos sermões recentes, dom Cappio silencia sobre a transposição e fala sobre a necessidade de revitalizar as margens e de preservação ambiental, proposta que também faz parte do pacote do governo, num custo à parte de R$ 1,5 bilhão, além do investimento inicial de R$ 4,6 bilhões. O bispo estava fora da cidade na quarta- -feira, quando Lula esteve por lá. A rádio comunitária, que dom Cappio controla, saiu do ar durante a visita, a primeira que um presidente da República fez à cidade.
Há uma discussão palpável sobre transposição e revitalização na cidade. Até o ano passado, as obras garantiam emprego a 120 trabalhadores. Em outubro de 2008, eles foram dispensados e substituídos por soldados do Exército. Inconformadas, as famílias choram empregos perdidos. À espera da chegada de Lula, a dona de casa Maria Aparecida Costa da Silva dizia: “Quero o emprego do meu genro”.
Capaz de envolver interesses profundos, a transposição foi atacada em dois flancos. De um lado, a partir de questões ambientais. De outro, a partir de empreiteiras de olho num investimento de vulto. A briga múltipla foi tão feia que, para garantir o início dos trabalhos, Lula usou as prerrogativas de comandante em chefe das Forças Armadas e convocou o Exército para assumir a primeira fase da construção: a ligação de concreto entre o São Francisco e os canais que chegarão ao interior nordestino.
A providência deu mais ou menos certo. Os militares atenderam às ordens. Encarregadas das etapas seguintes, as empreiteiras tocaram o serviço com extrema lentidão, na clássica atitude de quem pretende arrancar um reajuste até o fim do contrato. Em fevereiro, quando estava claro que, naquele ritmo, não haveria nada para mostrar em 2010, o governo fez uma reunião com três ministros de Estado – sob o comando de Dilma Rousseff – e diversos executivos. O engenheiro Frederico Fernandes de Oliveira, que coordena a obra, conta como foi: “O presidente Lula costuma dizer que ‘temos de fazer tudo o que puder ser feito’. Foi o que fizemos”.

Decidiu-se, ali, dar prioridade a um trecho chamado Eixo Leste. É o mais curto, com 276 quilômetros de extensão. É o mais barato. É aquele que se espera inaugurar antes da eleição. Também simboliza uma providência contra a seca num universo em que nunca se fez nada tão ambicioso. Isso será útil para a população e também para a propaganda. Para garantir os prazos de 2010, na reunião criou-se um novo turno de trabalho, à noite.

A transposição tem outros dois eixos. O Norte, com 426 quilômetros, ficou para 2012. Há também um terceiro eixo, que nem sequer foi licitado e não tem prazo para começar. Os trabalhos têm um longo caminho pela frente, mas já produzem sinais de melhoria na região. No total, a transposição abriu 8.400 empregos. Em Xique-Xique, na Bahia, a construção de um canal de irrigação gerou 800 postos de trabalho, num lugar onde a mão de obra ativa é composta de 12 mil pessoas. “Nossos índices sociais continuam ruins, mas a vida melhorou”, afirma Felisberto José de Santana, chefe local do escritório do IBGE. “Temos de saber o que vai acontecer daqui a dez anos. Mas nunca esteve tão bom.”
As obras de transposição levaram à desapropriação, por utilidade pública, de casas e terrenos de quase 800 famílias. Como ocorre em toda parte, muitos donos de imóvel discutem o valor a receber. Interessado em acordos rápidos, o governo paga R$ 800 como ajuda à mudança e oferece uma pensão mensal de R$ 1.200 até o acerto final. Algumas negociações andam tão difíceis que o governo valeu- -se até de uma medida provisória para garantir que poderá tocar a obra mesmo que as desapropriações demorem além da conta. “Cadê o real?”, pergunta Cleonice Rodrigues Beatriz Santos, quatro filhos, uma neta, numa casa de barro, com dois quartos e TV. “Estão pagando pouco. Sou a favor da obra porque todo mundo deve ter água. Mas quero um preço justo.”
A maioria das famílias paga aluguel e, para elas, os benefícios são mesmo compensadores. Há 20 anos, a agricultora Ana Maria Pereira Callou Santos mora com a sogra, em Cabrobó, com o marido e dois filhos. Planta cebola, tomate, feijão e milho. Vai sair de lá para uma casa de 99 metros quadrados. Nada vai pagar pelo imóvel e, com o passar dos anos, ela poderá se tornar proprietária. Terá médico de graça e 5 hectares para lavoura própria. “Estou impaciente para mudar”, diz.
Quem visita este pedaço quente e abandonado do país logo entende a paisagem. Nas vizinhanças de rios, lagos e açudes, há vida. Floresce uma vegetação verde, bonita. As cabras se alimentam. Fora dessas pequenas áreas, é a areia, a morte. Há um século e meio, coube a um imperador de barbas brancas entender que era preciso fazer algo por ali. Na semana passada, um presidente de barbas grisalhas exibia o que ninguém fez antes dele. É pouco, está atrasado, mas ainda não fora visto nada parecido. Para quem mora neste canto do Brasil, o progresso caminha a passos vagarosos e incertos, como o burrinho que puxa a carroça que vende água."
Época, 2009

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